sábado, 28 de maio de 2011

Lições de Fukushima

Olá pessoal.
Antes de mais nada, desculpem-me por não publicar nenhum post semana passada! É que o bicho está pegando! A boa notícia é que enquanto eu tento manter a lucidez em meio ao caos de tantos prazos se esgotando, teremos hoje uma participação especial que não nos deixará sem o nosso post semanal. O físico nuclear Dr. Airton Deppman, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo desde 1998, fala-nos sobre as lições de Fukushima.




O desastre provocado no Japão pelo forte terremoto no último dia 11 de março, seguido de tsunami, é de proporções gigantescas quando comparado com acontecimentos naturais registrados nas últimas décadas. Não bastassem as perdas humanas, segue-se ainda o acidente nuclear, muito provavelmente induzido pelo abalo sísmico e pela onda gigante.

Qualquer acidente nuclear é, em si, um problema preocupante. Vazamento de material radioativo gera riscos à população que, se mal administrados, perdurarão por vários anos, e se bem administrados, gerarão custos financeiros extremamente altos. Some-se a isso danos ao ecossistema regional, ou eventualmente global, dependendo da magnitude do acidente.

O acidente de Fukushima é de natureza completamente diferente daquele de Tchernobyl, em 1986. Neste, o desastre ambiental foi provocado por falhas na segurança da usina, enquanto no Japão foi o desastre natural responsável pelas falhas do sistema. A escala do desastre, medida em energia liberada, também é completamente diferente: enquanto em Tchernobyl houve perda do controle da criticalidade do núcleo do reator, causando uma elevação brutal da temperatura do reator em um curto intervalo de tempo e a explosão subsequente, em Fukushima a reação em cadeia foi bloqueada com sucesso nos primeiros tremores de terra, "desligando" o reator. O efeito desses dois acidentes, no entanto, causam sobre a população do mundo inteiro reações muito semelhantes. A aversão à alternativa nuclear voltou a crescer e a despeito de ser uma fonte de energia praticamente tão limpa quanto a eólica, apesar de sua eficiência energética ser muito maior do que qualquer outra fonte, o medo das consequências de um acidente nuclear transformam em vilã uma opção ao uso de combustíveis fósseis que vinha ganhando espaço em vários países.

Mas será que o acidente de Fukushima de fato nos leva a essas conclusões? O terremoto seguido de tsunami dizimou cidades inteiras, paralisou a economia do país, destruiu plantas industriais. Industrias químicas e refinarias de petróleo despejaram toneladas de produtos tóxicos no meio-ambiente, casas e prédios foram transformados em destroços. Enquanto isso, nas usinas nucleares o sistema de segurança que controla a parte mais delicada do sistema funcionou perfeitamente e a reação em cadeia foi bloqueada. Os problemas que aconteceram foram devidos a falhas no sistema de refrigeração, que deveria permitir a troca de calor gerado pelo decaimento de material radioativo produzido durante o funcionamento da usina. Este mecanismo é natural, não pode ser parado, e a energia liberada aquece o reservatório de água dentro da usina. Sem esse sistema de refrigeração a temperatura subiu lentamente e a usina se transformou numa panela de pressão, até que o teto explodiu liberando uma nuvem de vapor.

O problema é que junto com essa nuvem saem também gases radioativos produzidos no núcleo do reator durante seu funcionamento normal. Como a temperatura é baixa quando comparada com aquelas de Tchernobyl, esses gases atingiram algumas dezenas de quilômetros e depois caíram sobre o solo. As correntes de ar dissiparam esses gases numa região limitada, que felizmente atingiu principalmente a costa do Pacífico.

O aumento da radioatividade na região aumentou, mas chegou a níveis pouco acima dos níveis naturais médios. Poderá causar prejuízos à saúde da população local, exigirá o isolamento ou a limpeza das regiões vizinhas às usinas, mas nada comparado a Tchernobyl. Será provavelmente mais próximo do acidente de Goiânia, onde nenhuma usina nuclear estava envolvida.

Fukushima nos deixará muitas lições. Aprenderemos muito sobre como melhorar a segurança das usinas nucleares, mas sobretudo já aprendemos que elas são muito mais seguras do que em geral esperávamos. Apesar da gravidade dos abalos sofridos pela usina, ainda foi possível manter um controle razoável da situação. Não há, portanto, motivos para se deixar de lado a opção nuclear numa rede híbrida de geração de energia, mesmo para o Brasil, onde biomassa e a eólica são opções também promissoras.

Mais que isso, a tecnologia nuclear não é uma opção, é uma necessidade. Além da energia, ela nos dá radiofármacos, métodos de diagnóstico clínico, métodos e produtos para quimioterapia. Investir em usinas nucleares é investir na tecnologia nuclear, na formação de pessoal técnico qualificado, e não apenas na geração de energia. O momento é de reflexão, mas na direção de aprender com o acidente no Japão. Este é o momento de investir no capital humano que temos no Brasil, e que poderá aprender com os acontecimentos em Fukushima e gerar novos conhecimentos para o nosso desenvolvimento tecnológico.


Dr. Airton Deppman



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Para não dizer que não falei de Fukushima!

sábado, 14 de maio de 2011

Os Simpsons e a energia nuclear

INTERROMPEMOS A NOSSA PROGRAMAÇÃO SOBRE O ACIDENTE DE CHERNOBIL PARA UM PRONUNCIAMENTO IMPORTANTE:

É com grande satisfação que anuncio que o blog, com dois meses e meio de vida, ultrapassou a marca das 1.000 visualizações!

Obrigada pelo apoio, pessoal. Vamos comemorar isso com os Simpsons.



A série "Os Simpsons" é uma paródia satírica do estilo de vida da classe média dos Estados Unidos, simbolizada pela família Simpson na cidade de Springfield. Essa cidade age como um universo completo, no qual os personagens podem explorar os problemas enfrentados pela sociedade contemporânea. Em "Os Simpsons", o governo e as grandes corporações são entidades insensíveis que se aproveitam do trabalhador comum, os políticos são corruptos, os religiosos são indiferentes aos fiéis e a polícia local é incompetente.

A energia nuclear também é um tema recorrente desde a criação da série em 1989. Homer Simpson trabalha na Usina Nuclear de Springfield, onde as normas de segurança são satiricamente relaxadas. Ele é um Inspetor de Segurança Nuclear do setor 7G e constantemente adormece e negligencia os seus deveres. A cena de abertura retrata Homer saindo da central nuclear de Springfield com uma vareta de combustível nuclear presa a sua roupa, sendo esta, posteriormente, atirada pela janela do seu carro. O descuido da usina por parte de seu proprietário, Montgomery Burns, e de seus funcionários, muitas vezes põe em risco os moradores da cidade local. A planta nuclear aproximou-se do colapso várias vezes, quase explodindo pelo menos uma vez. Além disso, a usina normalmente se livra dos rejeitos radioativos despejando-os de forma ilícita em áreas de preservação ambiental ao redor da cidade. Ironizando ainda mais a situação, a série já mostrou o surgimento de peixes com três olhos e o despreparo das autoridades.


É interessante notar o contexto no qual a série foi criada. Em 1989, 10 anos após o acidente nuclear de Three Mile Island e 3 anos após o acidente nuclear de Chernobil, cresciam cada vez mais as manifestações contrárias à energia nuclear. A segurança das usinas era constantemente questionada e as melhorias implementadas como normas de segurança após o acidente de Chernobil ainda não estavam completamente em prática. Isso se reflete nas primeiras temporadas de "Os Simpsons" com episódios inteiros girando em torno da questão nuclear. Com o passar dos anos, no entanto, esse tema aparece cada vez menos na série, tornando-se apenas um detalhe no contexto da estória.


Esse tom satírico da série, ao invés de levar a uma reflexão mais profunda do tema, tem, muitas vezes, o efeito contrário: apenas constrói um conceito superficial e negativo da energia nuclear nos espectadores. Tanto é que após o acidente nuclear do Japão, diversas emissoras de TV na Suíça, Alemanha, Canadá, Áustria, Austrália e Japão anunciaram a censura de alguns episódios da série que fazem piadas sobre a energia nuclear (veja a notícia aqui).

Por favor, não me compreendam mal! Não defendo a censura, nem pretendo lançar um movimento boicotando a série. Pelo contrário. Adoro "Os Simpsons" e sempre que sobra um tempinho eu assisto. O lance, como sempre insisto quando o assunto é mídia, é olhar conscientemente e criticamente: é entender que os temas ali aparecem exageradamente ridicularizados e usar isso como ponto de partida para uma análise mais profunda (de preferência usando diversas fontes) que lhe permita construir sua opinião sobre o assunto.

Esse trecho do programa comemorativo dos 20 anos de "Os Simpsons" fala um pouco sobre a contribuição da série para a percepção da energia nuclear (em inglês):



Teremos ainda muitos posts futuros sobre rejeitos radiotativos, segurança nuclear e efeitos biológicos das radiações, assuntos recorrentes na série. Por ora, confiram alguns episódios que selecionei pra vocês. (os episódios foram retirados do site, mas fica a lista como dicas de episódios com o tema nuclear).

1. A odisséia de Homer - Primeira temporada, episódio 03 (Janeiro/1990).

2. Peixe de três olhos - Segunda temporada, episódio 04 (Novembro/1990).


3. Definindo Homer - Terceira temporada, episódio 05 (Outubro/1991).

4. Burns Compra e vende - Terceira temporada, episódio 11 (Dezembro/1991).

5. Marge arranja um emprego - Quarta temporada, episódio 07 (Novembro/1992).

6. Marge contra o monotrilho - Quarta temporada, episódio 12 (Janeiro/1993).


7. O inimigo de Homer - Oitava temporada, episódio 23 (Maio/1997).


8. Na onda do mar - Nona temporada, episódio 19 (Março/1998).


Para saber mais:

Portal Simpsons

Episódios de "Os Simpsons" on-line
Guia de episódios de "Os Simpsons"
The Simpsons 20th Anniversary Special - in 3-D! On Ice! - Parte 1, Parte 2, Parte 3, Parte 4 e Parte 5.

domingo, 8 de maio de 2011

Chernobil: 25 anos! Fatos e Mitos sobre o acidente nuclear - Parte 3

Olá pessoal,
continuando nosso papo sobre o acidente nuclear de Chernobil, convido vocês a assistir ao documentário produzido pelo Discovery Channel em 2006 chamado O Desastre de Chernobil (título original: Battle of Chernobyl).

Antes de iniciar o vídeo, no entanto, fica um apelo: assistam com olhos críticos! Apesar de conter informações importantes que nos ajudam a entender a situação após o acidente, o documentário usa e abusa de cenas, textos e áudio com tendências sensacionalistas. Relembro aqui o que já postei no primeiro texto sobre o acidente: Poucos assuntos técnicos levantam tanta controvérsia quanto a energia nuclear e poucos assuntos nucleares tem um apelo tão emotivo quanto o desastre de Chernobil.

Além disso, ressalto também que a parte com a qual o documentário lida com os efeitos biológicos das radiações é bem fraca. Esse é um assunto complexo que gerou (e ainda gera!) muita polêmica e mitos em torno do tema. É por isso que estou vasculhando as pesquisas sobre o assunto para trazer para vocês as informações mais atualizadas!

Dito isto, confiram o documentário (em português):




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domingo, 1 de maio de 2011

Chernobil: 25 anos! Fatos e Mitos sobre o acidente nuclear - Parte 2



Na madrugada de sábado, 26 de abril de 1986, o pior acidente nuclear da História ocorreu em uma das usinas nucleares de Chernobyl, na antiga URSS, hoje Ucrânia, a 130 quilômetros ao norte de Kiev. Para entender melhor esse acidente, precisamos entender também a época em que ocorreu e o tipo de reator de potência em operação naquela ocasião.




A guerra fria e o programa nuclear soviético

O acidente de Chernobil aconteceu nos últimos anos da chamada Guerra Fria. Guerra Fria é a designação atribuída ao período histórico de disputas estratégicas e conflitos indiretos entre os Estados Unidos (EUA) e a União Soviética (URSS), compreendendo o período entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). Em resumo, foi um conflito de ordem política, militar, tecnológica, econômica, social e ideológica entre as duas nações e suas zonas de influência.

Terminada a Segunda Guerra Mundial (1945), as duas potências vencedoras - EUA e URSS - dispunham de uma enorme variedade de armas, tanto desenvolvidas durante o conflito, quanto obtidas dos cientistas alemães e japoneses. Novos tanques, aviões, submarinos, navios de guerra e mísseis balísticos constituíam as chamadas armas convencionais. Mas também haviam sido desenvolvidas novas gerações de armas não convencionais, como armas químicas e biológicas, que praticamente não foram utilizadas em batalha. O maior destaque, no entanto, ficou com uma nova arma não-convencional, mais poderosa que qualquer outra arma já testada até então: a bomba atômica. Em 1945, só os Estados Unidos dominavam essa tecnologia, o que aumentava em muito seu poderio bélico e sua superioridade militar estratégica em relação aos soviéticos.

A União Soviética iniciou então seu programa de pesquisas para também produzir tais bombas, o que conseguiu em 1949. Mas logo a seguir, os EUA testavam a primeira bomba de hidrogênio, centena de vezes mais poderosa. A União soviética levaria até 1953 para desenvolver a sua versão desta arma, dando início a uma nova geração de ogivas nucleares menores, mais leves e mais poderosas.

Essa corrida ao armamento era movida pelo receio recíproco de que o inimigo passasse a frente na produção de armas, provocando um desequilíbrio no cenário internacional. Se um deles tivesse mais armas, seria capaz de destruir o outro. A corrida atingiu proporções tais que, já na década de 1960, os EUA e a URSS tinham armas suficiente para vencer e destruir qualquer outro país do mundo. Uma quantidade tal de armas nucleares foi construída, que permitiria a qualquer uma das duas superpotências, sobreviver a um ataque nuclear massivo do adversário, e a seguir, utilizando apenas uma fração do que restasse do seu arsenal, pudesse destruir o mundo. Esta capacidade de sobreviver a um primeiro ataque nuclear, para a seguir retaliar o inimigo com um segundo ataque nuclear devastador, produziu medo suficiente nos líderes destes dois países para impedir uma Guerra Nuclear.

A chamada Crise dos Mísseis quase levou as duas superpotências a um embate nuclear: em 1962, a União Soviética foi flagrada construindo 40 silos nucleares em Cuba. A resposta dos EUA foi imediata: foi ordenada quarentena à ilha de Cuba, posicionando-se navios militares no mar do Caribe e fechando os contatos marítimos entre a União Soviética e Cuba. Essa tensão foi amenizada com um acordo de retirada dos mísseis soviéticos de Cuba e dos míssies norte-americanos da Turquia.

O período da distensão (1962-1979) - Détente - seguiu-se à crise dos mísseis. Os EUA e a URSS decidiram realizar acordos para evitar uma catástrofe mundial. Nesta época, vários tratados foram assinados entre os dois lados:
- Tratado de Moscou (1963): Os dois países regularam a pesquisa de novas tecnologias nucleares e concordaram em não ocupar a Antártica.
- TPN (Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares - 1968): Os países signatários (EUA, URSS, China, França e Reino Unido) comprometiam-se a não transmitir tecnologia nuclear a outros e a se desarmarem de arsenais nucleares.
- SALT I (Strategic Arms Limitation Talks - Acordo de Limitação de Armamentos Estratégicos - 1972): Previa o congelamento de arsenais nucleares dos Estados Unidos e da União Soviética.
- SALT II (1979): Prorrogação das negociações do SALT I.

Os dois países tinham seus motivos particulares para buscar acordos militares e políticos. A URSS estava com problemas nos relacionamentos com a China, e viu este país se desalinhar do socialismo monopolista de Moscou. Também estavam com dificuldades agrícolas e econômicas. E os Estados Unidos haviam entrado numa guerra contra o Vietnã, e na década de 1970 entraram em uma grave crise econômica.

Após o ano de 1979, seguiu-se uma nova fase nas relações amistosas entre os Estados Unidos e a União Soviética, que ampliaram as relações entre as duas superpotências. O período que vai de 1979 a 1985, 1987 ou 1988 (dependendo da classificação), ficou conhecido como "II Guerra Fria", devido à retomada das hostilidades indiretas entre EUA e URSS, após o período da "distensão". Em 1981, Ronald Reagan foi eleito presidente dos Estados Unidos e, ao contrário de seus antecessores, que pregavam a Distensão, Reagan defendia a retomada da estratégia de cercamento da URSS, o que implicava na retomada do confronto. Em 1983, Ronald Reagan anuncia a criação da Iniciativa Estratégica de Defesa, que ficaria conhecida como "Programa Guerra nas Estrelas", que tinha por objetivo criar um "escudo" contra os mísseis balísticos soviéticos, dando grande vantagem aos Estados Unidos na corrida armamentista e na corrida espacial. A reação soviética foi ampliar ainda mais os seus elevados gastos na área de defesa e no desenvolvimento do seu dispendioso programa espacial.

Em 11 de Março de 1985, Mikhail Gorbachev, com 54 anos de idade, foi eleito secretário geral do Partido Comunista, sendo, efetivamente, o verdadeiro líder da União Soviética nesse período. Sua plataforma política defendia a necessidade de reformar a União Soviética para que ela se adequasse à realidade mundial e a aproximação diplomática com o mundo ocidental. Acabou, assim, contribuindo para o fim da Guerra Fria.

A nova situação de liberdade na União Soviética possibilitou um afrouxamento na ditadura que Moscou impunha aos outros países que compunham a URSS. Pouco a pouco, Ocidente e o Oriente caminhavam para vias pacíficas. Em 1986, Ronald Reagan encontrou Gorbachev na Islândia para discutir novas medidas de desarmamento dos mísseis estacionados na Europa. Em 1986, Gorbachev também teve de lidar com a explosão do reator da Usina Nuclear de Chernobyl, que acabou afetando toda a Europa. A desorganização e as informações escassas na época contribuíram para que o regime comunista chegasse ao fim em 1991.

No contexto da Guerra Fria, os soviéticos desenvolveram seus primeiros reatores nucleares com o objetivo de gerar Plutônio (a partir do Urânio) para as armas nucleares. Alguns reatores foram desenvolvidos também para gerar calor para o aquecimento urbano. A partir desses reatores, a URSS projetou, sozinha, dois tipos de reatores nucleares para a geração de eletricidade: o RBMK e o VVER. O tipo RBMK é o mais velho dos dois projetos, sendo desenvolvido na década de 50. O primeiro RBMK (o AM-I) entrou em operação em 1954 em Obninsk. Já o reator tipo VVER é a versão soviética dos PWRs (Pressurized Water Reactors ou reatores resfriados com água pressurizada) sendo que o primeiro reator desse tipo (o VVER-210) entrou em operação em Novovoronezh em 1964.

Na década de 80, os soviéticos tinham um programa de energia nuclear forte e crescente. No momento do acidente, os reatores soviéticos geravam cerca de 10% da energia nuclear do mundo com 43 reatores em operação, totalizando 27.000 MegaWatts (MW) em capacidade elétrica instalada (a cidade de São Paulo HOJE consome energia a uma taxa média de 500 MW. Logo, 27.000 MW daria para abastecer 54 cidades como São Paulo!). Em construção, havia mais 36 reatores que representavam 37.000 MW, e planejava-se outros 34 reatores ou 36.000 MW. A figura ao lado mostra a divisão por tipo de reator na URSS em Janeiro de 1986. Interessante notar que na década de 80 já havia uma tendência soviética em planejar e construir mais reatores tipo PWR (os VVER) do que os tipo RBMK.


Os reatores tipo RBMK

RBMK é a sigla para reator Bolshoi moshchnosti kanalniy (expressão russa para "reator com canal de alta potência"), um tipo de reator com canais de combustível individuais. O RBMK utiliza Urânio natural ou ligeiramente enriquecido como combustível, água como refrigerante e grafite como moderador (já vimos neste post que moderador é o material que reduz a velocidade dos nêutrons rápidos originados na fissão nuclear, tornando-os mais lentos e capazes de sustentar uma reação em cadeia envolvendo o Urânio-235). O controle da reação de fissão nuclear em cadeia é feita por meio de barras de controle (absorvedoras de nêutrons) e ele não possui contenção de aço.

Nestes reatores, os blocos de grafite são perfurados verticalmente com cerca de 1660 furos, nos quais os tubos de pressão são fixados e as barras de controle são inseridas. Os tubos de pressão são estruturas metálicas em forma de cilindro que contêm o elemento combustível (ilustrado na figura ao lado) e um espaço (ou canal) por onde circula a água que atua como refrigerante. À medida que as fissões nucleares ocorrem, energia é liberada aquecendo o combustível. Água é então bombeada pela parte de baixo dos tubos de pressão passando pelo combustível quente (veja a figura abaixo). Ao remover o calor do combustível, a água transforma-se em vapor que deixa o núcleo do reator pela parte superior. A partir daí, o vapor passa por tubulações até chegar nas turbinas (em outro prédio), semelhante ao que ocorre nos reatores tipo BWRs ocidentais (Boilling Water Reactors), tipo de reator famoso na mídia devido ao acidente nuclear no Japão. Na passagem do vapor pelas turbinas, estas são giradas. O movimento das turbinas, por sua vez, giram geradores que produzem eletricidade. O vapor passa por um sistema de resfriamento transformando-se em água que volta para o núcleo do reator.



Na concepção do RBMK, o grafite opera em alta temperatura - cerca de 700°C (se você pudesse vê-lo, ele estaria brilhante como carvão em brasa). O problema com grafite a altas temperaturas é que, se exposto ao ar, ele queima lentamente, assim como o carvão em uma churrasqueira. Portanto, é muito importante manter o ar separado do grafite nos reatores RBMK. Para isso, os soviéticos optaram por colocar o núcleo do reator dentro de uma "caixa" metálica. Além disso, para a blindagem das radiações provenientes do núcleo, nas laterais dessa "caixa" de aço há "escudos" feitos de água, areia e concreto; no fundo e no topo da "caixa" de aço há barreiras de concreto (veja as figuras abaixo). Todos os tubos de pressão e as barras de controle estão ligados a esta tampa superior.


Tampa Superior do reator RBMK de Ignalina, na Lituânia.


Essa combinação de moderador grafite e refrigerante água não é encontrada em nenhum outro tipo de reator nuclear. O RBMK nunca foi construído fora da antiga União Soviética e tem certas características de projeto que o impediriam de receber a licença de construção/operação obrigatória em outros países. Em particular, eles apresentam características instrínsicas - de projeto - que o tornam propenso a picos de energia: quando o reator se sobreaquece formando vapor em excesso no núcleo, a reação em cadeia acelera aumentando a energia liberada. Além disso, o RBMK permite que o Sistema de Segurança (de desligamento automático) possa ser bloqueado e o reator passe a ser operado manualmente, não desligando automaticamente, em caso de perigo ou de falha humana.

Tais características foram em parte responsáveis pelo acidente de Chernobil, como veremos a seguir.


O acidente

O complexo nuclear de Chernobil era constituído por quatro unidades de reatores de potência do tipo RBMK. O acidente em 26 de Abril de 1986 ocorreu na quarta unidade.


O acidente de Chernobil foi o resultado de um projeto soviético falho de reator somado a erros cometidos pelos operadores da planta em um sistema no qual o treinamento foi mínimo e os feedbacks da experiência eram desconhecidos. Estas falhas, por sua vez, foram uma consequência direta do isolamento da Guerra Fria e a consequente falta de uma "cultura de segurança" rigorosa.

O reator número quatro, uma unidade RBMK de 925 megawatts (MW) de capacidade instalada, iria ser desligado para manutenção de rotina e decidiu-se aproveitar isto para executar um teste. Ironicamente, tal teste foi projetado para melhorar a segurança do reator. As bombas de refrigeração do reator demandam energia elétrica para seu correto funcionamento e o teste queria determinar se, no caso de uma perda de potência, a energia cinética de desaceleração do turbogerador poderia fornecer energia elétrica suficiente para operar o equipamento de emergência e as bombas de circulação da água de resfriamento do núcleo até que o suprimento de energia de emergência a diesel se tornasse operacional.

Para reduzir os requisitos de refrigeração, o reator foi operado em baixa potência, apesar do fato de os RBMK serem instáveis nestas configurações. Esse teste já tinha sido tentado em duas ocasiões anteriores, sem nunca ser concluído.

Entre 01:00 e 13:00 de 25 de Abril de 1986, a potência de operação do reator foi reduzida a metade e um dos dois turbogeradores movidos pelo reator foi desligado. O sistema de resfriamento de emergência do reator foi desabilitado, pois os operadores não queriam que ele entrasse em operação no meio do teste, quando as bombas principais de circulação de água tivessem suas vazões diminuídas.

As 14:00, os controladores de rede pediram que o teste fosse adiado devido à demanda elétrica. O reator funcionou por mais de nove horas nesta condição de baixa potência até que foi dada a permissão para continuar a diminuição da potência. A potência deveria ter sido mantida no nível de teste, entre 700 MW e 1.000 MW, mas o controle automático foi configurado incorretamente e a potência caiu para 39 MW (1% da potência normal de operação) às 00:28 da madrugada de 26 de Abril, permitindo que concentrações do produto de fissão Xenônio (que é om ótimo absorvedor de nêutrons) aumentassem.

Isto, juntamente com o fato de que havia seis bombas de refrigeração em operação, o que tornava excessivo o fluxo de água no núcleo resfriando-o além do necessário, diminuiu significativamente a reatividade do reator, dificultando a restauração da potência pelo operador. Vamos entender melhor isso.

Reatividade é uma medida do desvio da criticalidade do reator, isto é, do desvio da capacidade do reator em sustentar uma reação em cadeia sem que a população de nêutrons aumente com o tempo. Quando há uma diminuição da reatividade (reatividade negativa), há um desvio da condição de criticalidade "para baixo", implicando que o número de nêutrons disponíveis para a fissão diminui com o tempo. Nesse caso, existe então uma tendência em diminuir o número de fissões com o passar do tempo, podendo, em última instância, resultar no desligamento do reator. Ora, a potência está diretamente relacionada com o número de fissões que ocorrem no reator! Se há uma tendência em diminuir o número de fissões, consequentemente há uma tendência em diminuir a potência!

Se, por outro lado, ocorre um aumento na reatividade (reatividade positiva), há um desvio da condição de criticalidade "para cima", implicando que o número de nêutrons disponíveis para a fissão aumenta com o tempo. Nesse caso, existe uma tendência em aumentar o número de fissões com o passar do tempo, podendo resultar, por exemplo, em picos de potência, isto é, aumentos repentinos na potência do reator.

Pois bem, voltando ao caso do reator 4 de Chernobil, estava difícil aumentar a potência para o nível de teste (entre 700 MW e 1.000 MW). À 01:20, o operador conseguiu estabilizá-la em 200 MW (7% da potência normal de operação), mas foi incapaz de aumentá-la ainda mais devido à perda de reatividade. Esta potência era bem inferior à necessária para manter o controle seguro do reator, mas, mesmo assim, foi tomada a decisão de ir adiante com o teste.

Duas outras bombas de água de resfriamento foram iniciadas, levando a um aumento no fluxo de água além dos limites operacionais. Isso causou uma redução nas bolhas de vapor do sistema de resfriamento, reduzindo a reatividade ainda mais. Diante disso, as barras de controle - que são usadas ​​em reatores nucleares para controlar a taxa de fissão - foram retiradas além dos limites prescritos em uma tentativa de aumentar a reatividade e, consequentemente, a potência. Houve um momento em que apenas seis a oito barras de controle estavam sendo usados. De acordo com o procedimento, pelo menos 30 barras eram necessárias para manter o controle da reação em cadeia. Se houvesse menos de 30 barras de controle inseridas no núcleo, o reator deveria ter sido desligado.

Os operadores continuaram o teste, apesar de saber que cerca de 20 segundos seriam necessários para introduzir todas as barras de controle no núcleo e desligar o reator no caso de um surto de energia. Para manter o teste em execução, o sistema de proteção que teria disparado o reator se os limites operacionais fossem ultrapassados foi desconectado. O teste foi iniciado às 01:23, fechando o fornecimento de vapor para o turbo-gerador.

À medida que a turbina diminuiu sua velocidade de rotação, a quantidade de água de refrigeração fornecida ao reator diminuiu e vapor foi rapidamente produzido. Houve um aumento no número de reações de fissão e, conseqüentemente, da produção de energia devido ao aumento dos espaços vazios no reator (bolhas de vapor), levando o reator a produzir mais energia e mais vapor e mais vazios nos canais de combustível.

Às 01:23:44 da madrugada, hora local, em 26 de abril, houve um pico de energia repentino e inesperado. A potência do reator aumentou exponencialmente, até cerca de 100 vezes a potência nominal. As barras de controle não puderam ser totalmente reinseridas no núcleo a tempo. O projeto das barras de controle simplesmente não permitia uma inserção acelerada. Além disso, o deslocamento inicial de água à medida que as barras eram colocadas dentro dos canais de pressão agravou a situação. Isso porque o projeto das barras de controle tinha uma falha fatal: as barrasde controle tinham uma ponteira de grafite que deslocam água à medida que as barras de controle são inseridas. Entretanto, estas ponteiras de grafite podem aumentar a reatividade na parte inferior do núcleo quando as barras são inseridas a partir de uma posição em que estão completamente retiradas do núcleo. No teste de Chernobil, muitas barras de controle que não estavam inseridas no núcleo foram simultaneamente inseridas neste enquanto o aumento do número de bolhas estava causando um rápido aumento na potência. Isso contribui para que a potência subisse tão rapidamente que o reator foi destruído.

O combustível aquecido e alguns dos canais de combustível romperam-se. A explosão resultante, provavelmente causada pela pressão de vapor e por uma reação química com o combustível exposto, explodiu a tampa de vedação de concreto de 1.000 toneladas do núcleo do reator. Uma segunda explosão jogou para fora do núcleo combustível e grafite queimados e permitiu a entrada de ar, fazendo com que o moderador grafite explodisse em chamas. A causa exata da segunda explosão ainda é desconhecida, mas acredita-se que o hidrogênio pode estar relacionado com isso.

Determinar as causas do acidente não foi fácil, porque não havia nenhuma experiência de eventos similares para consulta. Relatos de testemunhas oculares, as medições realizadas após o acidente e reconstruções experimentais foram necessárias. As causas do acidente ainda são descritas como uma combinação fatal de erros humanos e falhas tecnológicas.


As medidas adotadas depois da explosão e os efeitos biológicos do vazamento da radiação serão apresentados no próximo post. Não percam as cenas do próximo capítulo!


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Para saber mais:

Chernobyl Fact File (NucNet report) (em inglês)
Chernobyl – A Canadian Perspective
(em inglês)
Guerra Fria - Wiki
RBMK - Wiki (em inglês)